RIO — O design anatômico lembra as escovas de dentes vendidas nas
farmácias. No lugar do plástico e das cerdas macias, porém, marfim
cuidadosamente esculpido e espaços para tufos de pelo de porco. No cabo,
uma inusitada inscrição em francês: “S M L’Empereur du Brésil” (sua
majestade o imperador do Brasil). Descartável para presidentes e
monarcas de hoje em dia, o item de higiene bucal e imperial muito
provavelmente foi usado por dom Pedro II. Estava guardado há mais de um
século no subterrâneo do terreno atrás da antiga Estação Leopoldina, no
Centro.
É apenas uma entre milhares de relíquias que brotaram de
um enorme sítio arqueológico explorado silenciosamente desde março por
uma equipe de 26 profissionais e aberto pela primeira vez à visita de
repórteres. O trabalho convive com o ritmo frenético de um canteiro de
obras da Linha 4 do metrô, que financia a pesquisa. Ainda em fase de
escavação — a análise criteriosa das peças será feita entre 2014 e 2015
—, as trincheiras já reconstituem hábitos sociais do século XIX,
principalmente da elite e da família imperial, que usavam a região como
área de descarte. Há, em menor número, itens dos séculos XVII e XVIII.
Ao todo, são cerca de 200 mil objetos ou fragmentos localizados, 90%
deles do século XIX.
— Não temos motivos para não acreditar que a
escova foi produzida para o imperador, para a imperatriz ou para alguma
princesa. A cerda de pelo de porco se perdeu, mas a escova sobrou —
conta o arqueólogo e historiador Claudio Prado de Mello, que coordena a
equipe.
Outra descoberta relevante é a área exata onde funcionou,
entre 1853 e 1881, o Matadouro Imperial, local oficial de abate do gado
que abastecia a cidade. Sabia-se que o matadouro era ali por causa de um
pórtico preservado, mas vários resquícios estavam escondidos até o
início das escavações.
Restou um largo calçamento de pé de
moleque, ossos bovinos de aproximadamente 150 anos, ferros, ganchos e
outros indícios que ajudarão a entender a metodologia do abate bovino da
época. Mas a riqueza do matadouro é o piso original preservado da parte
de fora do complexo, já que os prédios foram destruídos. Canaletas ao
redor também indicam que o sangue dos animais tinha um caminho a ser
percorrido rumo aos rios da região.
Já foram abertas pelo menos 11
trincheiras, os buracos onde arqueólogos, historiadores, biólogos e
ajudantes trabalham sob a supervisão do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Além da escova, já foram
identificadas centenas de objetos, como uma garrafa de vidro produzida
para a família imperial, caixas de fósforo escocesas, canecas com brasão
do Império e até um anel e um prendedor de gravata de ouro. Recipientes
de pasta de dentes feitos em louça têm destaque na coleção. Há sabores
para todos os gostos, como lírio florentino e uma mistura de cereja,
hortelã e pimenta. Tudo para “limpar e conservar os dentes e as
gengivas”, diz uma embalagem, e “free from acid” (livre de ácido), diz
outra.
Mello explica que, como não havia coleta de lixo, moradores
cavavam buracos em seus quintais para enterrar resíduos. Quando não
existia espaço no terreno, outros pontos eram escolhidos, em geral os
baixos, que precisavam de aterro. Foi o caso da região conhecida hoje
como Leopoldina, que já foi ocupada até por índios temiminós liderados
por Arariboia antes de serem levados para Niterói no século XVI, explica
o arqueólogo. A região entre a Cidade Nova e São Cristóvão era muito
suscetível a alagamentos antes dos vários aterros feitos ao longo do
século XIX.
— Quando dom João VI foi para o palácio de São
Cristóvão, atual Museu Nacional, a solução foi criar um aterro, já que
existia um grande pântano do Centro até lá. Esse alagado o incomodava.
Em princípio era um passadiço, que virou rua e depois o chamado Caminho
das Lanternas — diz Mello.
Para a outra escavação, a do metrô, são
fabricados e estocados ali, diariamente, anéis de concreto do futuro
túnel por onde passarão os trens que ligarão as estações General Osório e
Gávea. A cada dia, a fábrica produz 18 metros de túnel. Enquanto as
pilhas de aduelas vão tomando conta do terreno, cuja propriedade é
dividida entre os governos federal e fluminense, os profissionais correm
para resgatar o passado.
Mello chama a atenção para o grande
número de materiais intactos. Isso se deve, em boa medida, ao uso do
terreno ao longo do tempo. Não há registro de grandes construções por
lá. O local foi estacionamento e área de manutenção de trens da antiga
Estação Leopoldina e, posteriormente, da SuperVia. Mesmo sob o trânsito
de pesadas composições, os objetos resistiram em profundidades de 50
centímetros a três metros.
Os achados são variados. Até frascos de
vidro, provavelmente usados em farmácias, foram preservados com líquido
dentro, de quase 200 anos. Tudo será levado ao laboratório. Também
foram encontrados 110 recipientes de stoneware, material feito de argila
filtrada, batida e cozida em fornos de alta temperatura, principalmente
na Alemanha do século XIX. O Brasil importava água engarrafada nesses
recipientes, que, depois, eram reutilizados.
— No século XIX, foi
descoberta no Distrito de Nassau, na Alemanha, uma fonte de água com
propriedades curativas. Existia, na Europa, uma indústria de garrafas
stoneware, que são extremamente resistentes — diz o arqueólogo.
Cachimbos
também saíram do subterrâneo. No sítio no Cais do Valongo, não muito
longe dali, foram achados os usados por escravos africanos. Na
Leopoldina, boa parte vem da Europa. São cachimbos que pertenceram a
marinheiros que chegavam aqui em navios comerciais e se dispersavam pela
cidade. Há pequenas esculturas nas pontas. Uma delas mostra uma figura
turca, bastante expressiva. Outra, um homem pedalando numa bicicleta.
Como
há de tudo no lixão, também surgiu da terra uma garrafa de vidro usada
para água gasosa com a inscrição, em alto relevo, “To the Royal Family”
(para a família real). Também há moedas de várias épocas.
Até o
fim do ano, todos os buracos serão fechados provisoriamente com um
material de proteção, para que as partes do futuro túnel do metrô possam
ser estocadas. A fábrica dos arcos deve terminar sua produção apenas em
2015. Em 2016, as trincheiras serão reabertas para captação de novos
objetos históricos.
Depois, o Iphan escolherá o destino do material.
Superintendente do Iphan no Rio, Ivo Barreto diz que a riqueza
arqueológica do sítio do matadouro surpreendeu. Segundo ele, há
conversas iniciadas com o governo estadual sobre a criação de um centro
de arqueologia que abrigue novas descobertas, inclusive as do matadouro,
e trabalhe aliado a universidades:
— É viável pensar num processo
de desenvolvimento que não abale a memória do Rio, e isso é demonstrado
com clareza no matadouro. Ali é feita uma obra importante, foi
encontrada uma solução viável para proteger o sítio e continuar depois o
trabalho. O acervo do matadouro tem uma escala que não esperávamos,
felizmente.
Subsecretário estadual da Casa Civil, Rodrigo Vieira conta que os prazos curtos da obra conviveram bem com a pesquisa:
—
Fomos ajustando nossos cronogramas para atingir um objetivo comum entre
redescobrir e preservar a História e fazer uma linha de metrô que
atenderá 300 mil pessoas por dia.
Tesouro do Valongo ainda está em contêineres
O
cruel cotidiano de pelo menos 500 mil escravos que chegaram ao Brasil
pelo Cais do Valongo, na Zona Portuária, foi detalhado num trabalho
arqueológico de equipes do Museu Nacional, iniciado em março de 2011,
durante as obras da primeira fase do Porto Maravilha. Depois de
concluída a obra, há quase um ano, milhares de objetos ficaram guardados
em contêineres na Praça dos Estivadores, também na Zona Portuária.
Reportagem do GLOBO de janeiro deste ano mostrou que as peças estavam
armazenadas precariamente, expostas ao tempo. O material foi guardado
depois, mas continua em contêineres e só deve ser transferido em
dezembro.
O Instituto Rio Patrimônio da Humanidade anunciou, em
julho, que os objetos do Valongo poderão ser vistos pelo público até o
fim deste ano, quando o Centro Cultural José Bonifácio será reinaugurado
num casarão da Gamboa, depois de ser restaurado a um custo de R$ 3,4
milhões. São cachimbos, amuletos e pulseiras, entre outros objetos que
serão expostos em mostra permanente no centro, que fará parte do
Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana.
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