Ulisses e seus homens são atacados pelas Sereias -- que, nessa versão do mito, têm corpo de ave -- em pintura do século 19 (Foto: Reprodução)
Em 16 de abril do ano 1178 antes de Cristo, depois de passar quase duas décadas lutando em terras estrangeiras e vagando pelos mares, um rei chamado Odisseu (ou Ulisses, como seria mais conhecido) finalmente voltou para casa. Ao lado de seu jovem filho, massacrou os nobres que estavam tentando usurpar seu trono e pôde passar uma longa noite de amor com a esposa, Penélope. A descrição do que aconteceu naquele dia é do poeta grego Homero, no épico "A Odisséia", mas a data incrivelmente precisa para o retorno de Odisseu/Ulisses está sendo proposta por uma dupla de astrônomos. Eles dizem que há uma correlação surpreendente entre a história narrada por Homero e um eclipse do Sol espetacular em 1178 a.C.
A tese, aparentemente amalucada mas indiscutivelmente fascinante, está sendo apresentada por Constantino Baikouzis, do Observatório Astronômico de La Plata (Argentina), e Marcelo Magnasco, da Universidade Rockefeller (EUA), na edição desta semana da revista científica americana
"PNAS". Se a dupla estiver correta (e até os dois admitem que a idéia é um tanto mirabolante), seria possível até datar o fim da guerra de Tróia com precisão: os troianos teriam sido derrotados pelos gregos em 1188 a.C., uma vez que o herói levou dez anos para voltar para casa.
Verdade seja dita, Baikouzis e Magnasco não tiraram a hipótese da cartola. A idéia de que a volta para casa do grego Odisseu (também chamado pelo nome latino Ulisses) foi acompanhada de um eclipse solar total foi levantada pela primeira vez nos anos 1920. Na época, pesquisadores associaram o eclipse que aconteceu ao meio-dia de 16 de abril de 1178 a.C. a uma descrição poética num dos versos da "Odisséia".
O contexto da descrição é uma espécie de profecia agourenta feita pelo vidente Teoclímeno. O adivinho faz a previsão para os nobres de Ítaca (a ilha governada por Odisseu) que estão cortejando há anos a fiel esposa do guerreiro grego. Embora Odisseu esteja fora de casa há quase 20 anos, Penélope acha que ele ainda está vivo, e fica enrolando os pretendentes. Teoclímeno, o vidente, diz aos nobres de Ítaca que a coisa logo ficará feia para o lado deles: "O Sol foi exterminado do céu, e uma escuridão agourenta invade o mundo".
Licença poética?
Os antigos defensores da tese de um eclipse real viram justamente essa descrição como uma referência ao evento celeste. E propuseram a data de 16 de abril de 1178 a.C. por ser o único eclipse total do Sol visível na costa oeste da Grécia (região onde ficava o reino de Ítaca) por volta da época tradicionalmente associada com a guerra de Tróia, ou seja, o fim do século 13 a.C. Muita gente, no entanto, criticava essa posição, avaliando que a profecia de Teoclímeno era apenas uma referência poética à morte dos pretendentes.
No entanto, Baikouzis e Magnasco decidiram fazer uma análise mais detalhada, levando em conta todas as indicações astronômicas e de calendário na "Odisséia", em especial nos dias do poema que antecedem a chegada de Odisseu a Ítaca. O interessante é que, com base nos versos de Homero, é possível traçar uma cronologia da jornada do herói pelo Mediterrâneo.
Contando os dias que levam para a viagem de Odisseu e associando-os a dados astronômicos, dá para estimar quando a jornada teria acontecido. Ao navegar rumo a Ítaca saindo da ilha de Ogígia, lar de sua amante, a bela ninfa Calipso, Odisseu se guia pelas estrelas, de olho em três constelações: as Plêiades, o Boieiro e a Ursa Maior. O poeta também diz que a constelação do Boieiro "se põe tarde" no céu -- o que significa que a partida da ilha de Ogígia aconteceu em março.
Outras indicações envolvem a chegada do herói a Ítaca durante uma lua nova e, o que é mais duvidoso, uma inversão aparente no movimento do planeta Mercúrio. (Nesse último caso, os astrônomos acreditam que uma menção a uma viagem do deus Hermes, equivalente a Mercúrio entre os gregos, pode ser interpretada como uma alegoria do movimento do planeta.)
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De tirar o fôlego
Por coincidência ou não, quando os pesquisadores computaram todos esses dados e rodaram programas de computador capazes de simular o céu da época de Ulisses, a data fatídica reapareceu: 16 de abril de 1178 a.C. Se eles estiverem corretos, Odisseu presenciou um espetáculo raro da natureza: nesse eclipse, todos os planetas visíveis a olho nu (Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno), a Lua e o Sol eclipsado seriam vistos juntos no céu.
Os cálculos dos pesquisadores parecem bater perfeitamente, mas é claro que uma série de problemas ainda têm de ser resolvidos para provar a hipótese. O mais sério de todos é saber como o dado preciso da data chegou a Homero. Afinal, acredita-se que o poeta tenha vivido uns 400 anos depois dos eventos narrados na Odisséia -- se é que esses eventos aconteceram mesmo.